Moradia para quem vive nas ruas da capital

Programa lançado pela prefeitura prevê habitação para pessoas em situação de rua

Por Juliane Lucca e Marcelo Noms
ju.pngMilhares de pessoas vivem nas ruas de Porto Alegre. Foto: Juliane Lucca

Uma pesquisa feita em 2015 pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) em parceria com a UFRGS apontou que, em Porto Alegre, viviam cerca de 2.115 pessoas em situação de rua. No ano passado, uma novo levantamento foi feito pelas equipes de abordagem da FASC e revelou que 4 mil pessoas moram nas ruas da capital.

Para tentar reverter essa situação, a prefeitura lançou o Plano Municipal da Superação de Situação de Rua, em maio deste ano. É um projeto estruturante e intersetorial, que envolve várias secretarias. A coordenação do plano é feita pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), com o auxílio da FASC. Além desses setores, estão envolvidos no projeto as secretarias municipais de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDS), Serviços Urbanos (SMSUrb), Infraestrutura e Mobilidade (Smim), Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smams), Cultura (SMC) e Segurança (Smseg); a Procuradoria-Geral do Município (PGM); os Departamentos Municipais de Habitação (Demhab) e de Limpeza Urbana (Dmlu); a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) e a Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre (Procempa).

As ações do plano municipal iniciaram com o Projeto Mais Dignidade, escrito pela SMS em parceria com a FASC. Esse projeto foi submetido ao Ministério da Justiça para solicitação da verba junto à Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad). A primeira parcela da verba foi concedida em julho. A previsão é que o recurso seja utilizado em um ano, mas a duração do plano é até final de 2020. Para a etapa inicial estão previstas bolsas de auxílio moradia para 153 pessoas, 50 bolsas de oficinas para trabalho e geração de renda, qualificação das equipes de abordagem e ampliação da rede de saúde.

A Coordenadora do Plano de Enfrentamento da Situação de Rua na Secretaria Municipal de Saúde, Silvia Mendonça, esclarece que essas oficinas são pensadas junto com as pessoas em situação de rua. A primeira é uma oficina de costura, que vai acontecer no Centro POP II, no Centro de Porto Alegre. E estão previstos mais três cursos, que estão sendo articulados de acordo com os interesses dos moradores de rua. Silvia explica que também estão organizando um edital para contratação de uma organização que disponibilize facilitadores para auxiliar no trabalho: “Serão oito oficineiros para ajudar nas oficinas e 12 redutores de danos, para assistirem as visitas quinzenais de acompanhamento das pessoas que receberam o benefício do auxílio moradia.”

O Programa Moradia Primeiro

A concessão de bolsas de auxílio moradia é uma parte importante do Plano Municipal de Superação da Situação de Rua. “A ideia é que a primeira coisa ofertada para as pessoas em situação de rua seja a moradia”, afirma a coordenadora. Por isso, o Programa Moradia Primeiro é o elemento principal do projeto. A partir desse benefício é que são estabelecidos os demais auxílios, organizados pela SMS e FASC. “O esquema entre a Saúde e a Assistência Social para acompanhamento dessas pessoas é que, durante esse período que estão tendo o benefício da moradia, possam adquirir autonomia. Possam se desenvolver e ter independência de uma forma que, terminado esse prazo do benefício, eles continuem em superação da situação de rua”, declara Silvia.

Para que isso seja possível, está sendo desenvolvida uma parceria com ONGs e outras entidades para doação dos itens básicos de uma moradia, como fogão, geladeira e cama. Quanto ao emprego, aqueles que têm condições serão encaminhados ao SINE para que consigam um trabalho formal, com carteira assinada e demais benefícios. Além disso, a Secretaria Desenvolvimento Social e Esporte tem um convênio com o CIEE para ofertar bolsas para qualificação profissional.

Até o momento, cinco pessoas foram beneficiadas com o Moradia Primeiro e mais três estão conhecendo os lugares, para dar início ao processo de documentação. No entanto, a coordenadora revela que existe uma dificuldade em relação ao imóveis. A prefeitura disponibilizou um site para que os interessados cadastrem o imóvel, e uma equipe entra em contato com os proprietários para visitar o local. Mas, além do baixo número de cadastros, existe o problema da comprovação da titularidade do imóvel, uma das exigências do programa. “Para que a gente possa assinar o contrato e seja pago o valor pela prefeitura, tem que ter a titularidade do imóvel no nome da pessoa que está alugando”, informa Silvia. O valor da bolsa disponibilizado pela prefeitura é de R$ 500,00, o que também pode explicar o pouco interesse dos proprietários.

Os recursos para o programa totalizam R$ 1,8 milhão, oriundos do convênio da prefeitura de Porto Alegre com o Ministério da Justiça. Até o momento, foi repassado para prefeitura R$ 356 mil. Deste total, R$ 18 mil partem da administração municipal. O acordo prevê 306 bolsas auxílio-moradia, sendo 153 bolsas por semestre.

O trabalho da assistência social na superação de situação de rua

A Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) é um dos setores envolvidos no Plano Municipal da Superação de Situação e trabalha diretamente a Secretaria Municipal de Saúde. A FASC coordena as equipes de abordagem, responsáveis pelo contato com os moradores de rua.

O Presidente da Fundação, Joel Lovatto, explica que as pessoas vão para as ruas por diversos motivos. Pessoas que não tem mais nada e a rua é o último local disponível, ou aqueles que têm família e casa, mas encontram na rua uma forma de viver com liberdade. Em Porto Alegre, entre os 4 mil moradores de rua, existem as mais variadas condições. Lovatto esclarece que um dos trabalhos da entidade é resgatar a dignidade dessas pessoas. “É direito estar na rua, ir e vir, mas tem algumas situações que há risco eminente. Se nós somos solidários com os seres humanos que mais precisam, é o momento em que temos que dizer ‘aí tu não pode ficar, porque está pondo a tua vida em risco e as de outras pessoas também'”, afirma o presidente.

A pedagoga Patrícia Mônaco trabalha há dez anos com as equipes de abordagem. Atualmente são 12 equipes que se dividem em nove territórios atuando no atendimento dos que estão nas ruas. As equipes de abordagem são formadas por assistentes sociais, psicólogos, educadores sociais, pedagogos e técnicos, acompanhadas por um grupo que auxilia no atendimento médico quando necessário.. Com o trabalho de pesquisa feito por eles, Patrícia revela que foi possível traçar um perfil daqueles que optam por viver nas ruas. Esses dados contribuíram para a preparação do plano municipal. “À exceção das crianças que crescem em situação de rua, normalmente a situação de rua começa na vida do sujeito na média dos 24 e 25 anos. Toda a pessoa em situação de rua tem uma história composta por fragmentos que não deram certo: escola, família, trabalho. A falta de moradia é só uma evidência. O resto não se organizou e a pessoa teve que achar uma forma de sobrevivência e a rua se torna uma possibilidade”, conta.

Vanessa Baldini, Coordenadora da Proteção Social Especial, informa que, além do programa Moradia Primeiro e das oficinas, são disponibilizadas passagens para aqueles que vêm de outras cidades e desejam voltar. Para isso, foi feito um convênio com a Associação Riograndense de Transporte Intermunicipal – RTI. “Tem um movimento de pessoas que vem pra Porto Alegre em busca de trabalho e quando chegam aqui, não é aquilo que esperavam. E querem retornar para suas cidades, porque a família está lá ou porque vai tentar resgatar o trabalho”, explica a coordenadora. Até agora 36 pessoas já foram beneficiadas com as passagens.

A história por trás de Loreni  

Morador em situação de rua demonstra gratidão por ter saúde e liberdade 

Por Martha Dias e Marco Antônio Moreira

Loreni Alves da Silvia nasceu em uma reserva indigena de Miraguai, no interior de Tenente Portela (Município do Rio Grande do Sul), no ano de 1971. Hoje, com 47 anos, ele trabalha nas ruas de Porto Alegre juntando latinhas para reciclar. 

“Meu sonho é viver tranquilo e em paz como estou vivendo.” Ele narra que procura não fazer nada que vá causar mal aos outros, como sinal de empatia, e adota isso para que sua rotina seja fluida. “A hora que eu levanto de manhã cedo, eu agradeço à Jeová pela noite que passou e pelo dia que vem, pelo alimento, pela saúde, pelos olhos.” O Sr. Loreni é analfabeto, mas é grato pelo conhecimento que tem, ele não tem estudo porque cresceu nas ruas. Vive nas ruas desde os 6 anos de idade e ressalta que não possui pendências com a Justiça, apontando para o prédio do TJRS à sua frente, pois só foi detido em uma ocasião.  

foto 1 reportagem loreniCarrinho de coleta estacionado em frente ao TJRS / Foto: Martha Dias

Atualmente, ele mora na Praça Isabel, a Católica, em Porto Alegre. Loreni conta que não deve nada a ninguém e que a vida vai bem. “É difícil encontrar um morador de rua que nem eu que não deva nada à justiça e que não use drogas, que não bebe.” Seus únicos vícios, conta ele entre um sorriso, são do refrigerante Coca-Cola, o cigarro e o café. Não gosta de bebidas alcoólicas nem outras drogas ilícitas. 

foto 2 reportagem loreniLoreni contanto sobre seus três vícios na vida / Foto: Martha Dias

Quando questionado sobre seus planos futuros, Loreni diz que pretende viajar. “Eu já estou enjoado de estar em Porto Alegre e aí, eu pretendo ir para o interior, e conseguir uma companheira no interior, porque é muito difícil encontrar uma aqui.” Ele menciona que seu último relacionamento amoroso durou cerca de dois anos, mas era conturbado. Pois ela consumia pedras de crack e o vício acabava por esgotar os recursos financeiros do companheiro.  

Com sua rotina diária de trabalho, em que recolhe as sucatas para reciclagem, ele recebe em torno de 100 reais semanais, que usa para comprar os suprimentos de casa. Loreni declara que nunca lhe falta comida, nem para ele e nem para sua cadelinha, Diana de 12 anos de idade.  

foto 3 reportagem loreniCadela Diana, de 12 anos de idade, companheira de vida de Loreni / Foto: Martha Dias

Quanto à sua saúde, ele diz que “minha doença só Deus pode curar, tirando ele, médico nenhum pode.” Fora isso, ele já foi roubado e ameaçado de morte por outros moradores em situação de rua e afirma que nesses casos procurou a justiça. Mas confessa que lhe causou traumas, físicos e psicológicos. No ano de 2001 ele estava entrando na Igreja Universal, que fica na Avenida Júlio de Castilhos e foi atingido por um tiro de arma de fogo. O ferimento foi tamanho, que atravessou seu corpo e ele teve de ficar internado por quatro meses no hospital Hospital de Pronto Socorro(HPS). O ataque, Loreni atribui à inveja, os outros moradores de rua tentam lhe roubar e se aproveitar dele, mas ele não entrega. 

Tocando no assunto de discriminação, por ser um cidadão em situação de rua, ele diz que nunca sofreu por isso. Que conhece todos no bairro em que mora e eles sempre o ajudam, seja com lona para o telhado da casa, ou com uma boa conversa de fim de tarde. “Como eu vivo na rua desde criança, eu gosto de todo mundo, até das formigas.” 

A criação de Loreni foi tranquila, afirma ele. Ele morava com os pais em uma reserva indígena quando seu pai faleceu de velhice, um ano após sua morte, a mãe também o deixou. Ela foi vítima de uma picada de cobra quando saiu para caçar na mata. Sozinho, Loreni permaneceu na casa vazia por um ano. Da reserva, foi parar em uma cidade chamada Cristo Redentor quando saiu para caminhar, e seu perdeu. Loreni permaneceu na cidade por dois anos. Depois, foi encontrado por uma senhora de idade que o acolheu em sua casa. Ficou com ela por três anos, até ela abandoná-lo na rodoviária após informar que viajariam para Brasília, deixando Loreni sozinho na porta do ônibus.

A casa de Loreni 

Loreni conta que no início não tinha o carrinho de coleta para levar a sucata. O material era levado nas costas a carga do dia. Após, com o dinheiro da reciclagem, conseguiu comprar uma bicicleta usada, tirou as suas rodas e recolheu alguns pedaços de ferro para confeccionar, com suas habilidades de carpinteiro, um “carrinho”. Com as partes que restaram da construção, ele fez a sua casa. Loreni conta que coletou, também, algumas peças de madeira do cercamento da Orla do Guaíba, que estava sendo desmontado, e usou-as para fazer o isolamento da moradia.

foto 4 reportagem loreniInterior da casa de Loreni / Foto: Marco A. Moreira

A parte lateral de sua casa foi grafitada pelo artista Marcelo Pax, autor de grafites muito famosos espalhados pelas ruas de Porto Alegre. Pax começou sua trajetória cedo estimulado pela convivência da mãe artesã, incentivando os primeiros rabiscos. Hoje trabalha com um estilo muito particular, em um universo lúdico onde seus personagens habitam um mundo próprio, marcando presença em várias partes da cidade.

O telhado é coberto por uma lona, para isolamento da chuva e ventos, na parte de dentro é visto um forro de PVC. Ainda na lateral, podem ser vistas rodas de bicicleta, para que ele possa viajar e estacionar a casa onde quiser. Na parte frontal,  o sistema de água,  feito com canos e garrafões de agua, posicionados para que a pia funcione perfeitamente. Na varanda da pequena casa fica a casinha da cadelinha Diana, com a cama, agua e pote de comida.

Dentro da casa, há uma espécie de JK, com quarto, sala e cozinha juntos. A foto mostra a cama onde Loreni dorme, os armários com roupas e cobertores, a pia e o fogão, e  utensílios básicos para o dia-dia.

 

Um Iglu de Isopor em um dos Metros Quadrados Mais Caros da Capital

Bruno Dornelles
Douglas Webber
Colaborou: Alex Ramirez.

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Em meio ao barulhos de buzinas e motores em um canteiro de uma das mais movimentadas avenidas da capital gaúcha encontramos essa casa. Sob os olhares curiosos dos motoristas protegidos em carros hermeticamente fechados para não deixar o agradável ar condicionado escapar, gravamos a conversa com Claiton e Bruna. Foram as câmeras que atraíram a atenção de quem passava e não os moradores. O cenário do canteiro central que liga a avenida Goethe com a avenida Mariante, no bairro Rio Branco, às dez da manhã de uma quinta-feira quente, era das roupas no varal e uma pequena faxina. O local servia de moradia para dois casais em casas curiosamente improvisadas com isopor e lona. Claiton e Bruna moravam no local há dois anos. Para fins de curiosidade, o metro quadrado no bairro Rio Branco custa aproximadamente sete mil reais, segundo o site Agente Imóvel.

O leitor pode estranhar os verbos todos no passado, mas o motivo é simples: A vida na rua é efêmera e o local já não é mais habitado por eles, não é habitado por ninguém. Voltamos aos nossos anfitriões.

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Bruna é uma moça de Vacaria que veio para Porto Alegre após a morte de sua mãe, já Claiton mora nas ruas da capital desde os oito anos, quando fugiu de casa por causa do pai que o batia. O casal se conheceu em “bailes” e em uma noite de “vacas magras” Bruna ofereceu cerveja para Claiton. De lá para cá, moraram no viaduto da Borges, no viaduto Júlio de Castilhos e depois no canteiro central da Mariante. Enquanto estiveram no canteiro, viveram de doações e da reciclagem. O casal possui também três cães, que ganham mais atenção que eles, segundo Claiton. Ele exemplifica em um causo: Certa feita, uma senhora levou uma boa quantidade de carne moída para os cachorros. Para testar a mulher perguntou, “e para mim?”, foi aí que ela respondeu “tu tem boca para pedir, já eles não”. Claiton conta a história rindo da própria travessura, mas a verdade é que os cães são muito bem cuidados por eles e pelos doadores. No terreno não constava somente a casa deles, como também as casas dos animais, tamanho o asseio.

O material das casas era uma mistura de lona e caixas de isopor. “As caixas a gente ganha do Sushitsu”, conta Bruna, “Ajuda muito no frio”. De fato, isopor é um conhecido isolante térmico e com material abundante por causa da tele-entrega de sushi, o ideia arquitetônica foi ganhando destaque. Dentro da casa, tapete, cama, cômoda, enfeites e até uma TV com Playstation 2. “Os controles estragaram, mas gosto muito de futebol e GTA”, comentou Claiton. A luz vem do poste próximo. A cozinha é um fogo de chão feito um pouco mais distante. Enquanto conversávamos, Claiton estava preparando o que seria o almoço junto com a sopa que levamos. “A gente batalha pela mistura, para ter o que comer. A gente já usou droga, mas hoje não usa mais”, ele comenta, “As vezes vem um cara noiado e tenta ficar com a gente, mas acaba indo embora porque a gente é rigoroso com a limpeza e não gostamos de droga”.

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Pelo que se tem de exemplo, viciados não conseguem viver uma rotina como a de Bruna e Claiton. Eles vivem o dia, mas com o desejo de um dia melhorar de vida. “Ah, um sítio da zona sul. Para poder ter cachorro e até plantar alguma coisa. Esse é o sonho”, comenta Bruna.

Nosso bate-papo foi longo e nossa intenção era voltar e acompanhar mais momentos dessa família porto-alegrense. Menos de uma semana depois, a prefeitura de Porto Alegre retirou os moradores do canteiro. O objetivo era revitalizar com Food Trucks, mas o espaço foi usado apenas no primeiro final de semana após a desocupação. O paradeiro de Bruna e Claiton continua desconhecido.

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